Não existem mensagens.
Não existem mensagens.

O que é "A Rapariga ao fundo do copo de saké"?

É um texto dramático em 4 actos, para 4 personagens e uma deidade à procura de continuidade numa estrada cheia de buracos.

Espaço-Tempo

A acção situa-se em Lisboa, à excepção da viagem com que se inicia a peça, a qual decorre na estrada entre Peniche, mais propriamente à vista das Berlengas, e todo o caminho que vai da Ericeira a Sintra.
Em Lisboa, as cenas interiores repartem-se primeiramente entre as casas de Clara, de Paulo Jorge e de António. Existe ainda o espaço de um café, o do consultório de António e o da bilheteira e sala de espera do aeroporto. E o quarto escuro.
As cenas exteriores decorrem à entrada do quarto escuro, à entrada de um hospital público, na rua, no Parque das Nações e no jardim do Mosteiro dos Jerónimos.
O último espaço é abstracto. No texto é assinalado por “eternidade”. Para mim este espaço é um imenso blackout.

Hoje.

Voz Off

Búúúúúú. Búúúúúú. Tenho medo do escuro, sinto coisas a viver do outro lado. No meu espelho existem coisas que eu não consigo ver. Que respiram atrás de mim e me humedecem o pescoço. Coisas que me violam no escuro. Então abro os olhos e como ainda tenho sabão, ardem-me. Mas não quero ver caras, ouvir vozes não quero.

O Cauteleiro

A felicidade é uma coisa duvidosa, um pau de dois bicos. A felicidade não tem moral, é uma coisa em desequilíbrio e impermanência. Como você, que tenta guiar o seu carro numa estrada cheia de buracos, não é? Mas é difícil. Tenha calma. Você há-de lá chegar. Mas vá devagar e não beba mais. É uma coisa muito difícil de acreditar, menina, mas o mundo não vai acabar aqui.

Clara

Dizem que nós vamos ficando maduros, mas é “podres” que querem dizer. A vida estreita-se quando te apertam o cerco: as contas, os medos e “a culpa de toda a gente é realmente de ninguém”. É assim que um dia acordas e dás por ti a cobiçar os miúdos de dezoito anos, às vezes menos e é no mínimo “indecente”, para não dizer “patético”. Tudo porque não fizeste amor na adolescência. Adiaste para uma altura melhor que nunca chegou, para o cavaleiro andante cujo cavalo partiu a pata no caminho. Mas uma coisa é que conta: foram os anos que ficaram para trás e todo o amor que foste perdendo pelos cantos. Pelos bolsos descosidos todos fizemos cócegas à minhoca e ia sendo bom, até que descobrias que já não tinha piada e não conseguias deixar de o fazer. Foi aí, nesse dia, que sem querer te tornaste egoísta, porque o amor nunca foi mais do que uma estranha forma de bulimia e tu nunca te deste conta.

Rapariga

É uma coisa que me dilacera, a impermanência. Mas se for capaz, por um momento difícil e frágil, de deixar de raciocinar o mundo, então eu consigo vê-lo finalmente à minha espera: "um amor assim, que não cabia dentro deste mundo, coube dentro de mim". Depois, porque tudo é transitório, morreu de cirrose, embora há muito agonizasse. Mas a morte não era uma transição tranquila. Não havia sorrisos de beatitude, ascése, senão manhãs horríveis de espancamento mútuo, processos cada vez mais óbvios de vampirização. Deitávamos muito álcool nas feridas e à noite ardíamos juntos.

Paulo Jorge

Sim, tenho noção de estar a meter os pés pelas mãos, mas isso não quer dizer que eu seja um idiota chapado – embora haja uma certa probabilidade de essa ser a interpretação mais correcta -, mas o que eu queria realmente dizer é que neste momento em que aqui estou, consigo, a passear no parque – cuidado para não pisar o cocó – eu sinto o meu coração a bater com tanta força que deve ser por isso que não páro de falar. É que eu também tenho medo, Clara. Tenho muito medo de que você o ouça. Pausa. Olhe! está a anoitecer e hoje é lua cheia. A Clara sabe lá os perigos que isso tem. Prometa-me que jantamos juntos amanhã. A Clara gosta de comer? Já provou Clarinhas? Clarinhas de Fão? Não faz mal. É um doce regional para servir ao lanche e nós amanhã vamos jantar e o jantar é salgado - embora tenha uma pequena percentagem de doce. Na sobremesa. Não interessa. Até amanhã, Clara. Espero que me perdoe tanta inconveniência com o que a diverte a minha patética actuação. Enfim, é melhor calar-me. Até amanhã. Fique bem, minha claridade.

António

O túnel que antecede a luz, tudo isso é explicado pela neurologia, pelos processos químicos que entram em colapso, se se pode assim dizê-lo, no momento em que o cérebro deixa de ser irrigado pelo sangue. Então produzem-se visões, essas sensações dos túneis cheios de luz. Tudo se explica, minha claridade, se não for hoje, é amanhã. Mas não há nada do outro lado. Não há outro lado. Há só um ponto final difícil de conceber do teu ponto de vista antropocêntrico. Do ponto de vista biológico, no entanto, a vida é infinitamente mais humilde, sem deixar por isso de me assombrar. Tudo treme, tudo pulsa, há som em todo o lado, música, sei lá, dentro da tua mão – sabia que ias gostar. Olha, estás a vêr? Todo aquele lixo que ali está? Acabou de chover e, já reparaste? Fica tudo cheio de brilhos, de gotinhas de água penduradas, cristalinas. Tudo brilha, tudo está limpo e aí sim, sinto uma espécie de fé nesta água que cai do céu, limpa a cidade, leva o lixo por aí fora, para longe de mim. E de ti, já agora.

Cena 33. Tarde, varanda de António.

PAULO JORGE

Amo-te.


ANTÓNIO

Não digas disparates.


Pausa.


PAULO JORGE

Tens razão. Estão tão velhas estas casas. Estão mesmo a pedir obras. Pausa. Está ali uma mulher. Uma mulher na varanda. Que estranho. Uma mulher que vai à varanda dar de comer aos pombos. Eles têm fome. Tal como nós. Tem graça. Eles têm fome…


ANTÓNIO

O que é que tem graça?


PAULO JORGE

Detesto pombos. Parecem ratos.


ANTÓNIO

Isso não tem graça nenhuma.


PAULO JORGE

Tem graça, tem. Porque embora eles sejam horríveis, com pulgas, sarnentos, mal cheirosos, embora lhe caguem o prédio todo, lhe destruam a pedra da varanda, ela está ali. A dar-lhes de comer. Sem se importar. Com a fealdade. Então ela é “uma boa mulher”. Porque apesar deles serem feios, ela vê que têm fome e isso é uma coisa que ela não consegue suportar e então dá-lhes de comer, como se fosse uma espécie de Nossa Senhora dos Ratos. É essa espécie de bondade, de quem dá sem querer saber do futuro, é a isso que eu acho graça.


ANTÓNIO

Pois é. As pessoas não aprendem.


PAULO JORGE

Não aprendem, não.

Para M.

Acerca de mim

A minha foto
Portugal, verão quente de 75. Já não sei quantos dentes tenho, mas continuo a calçar o 37. Ainda pertenço à minha gata, apenas, mas já não confundo o "há" do tempo (o tempo tornou-se finalmente tangível). Sou simples, o melhor chega-me perfeitamente, etc. Estou aqui. Estou mesmo aqui.